Depois de 4 meses muito positivos, o mercado foi mais difícil a partir do início de agosto. O rally dos últimos meses reflete o início de virada no ciclo de política monetária nos EUA e com efeito especialmente positivo para o Brasil. Esse deve ser um ciclo positivo mais longo para os mercados mas, se vale essa tese (e acreditamos nela), essa queda recente merece uma explicação. Será que já há rachaduras precoces nessa virada do ciclo? Esses últimos meses foram um alarme falso? Achamos que não e vamos justificar aqui. Vamos mostrar porque achamos que esse sell-off de agosto não vai perdurar. Mas também vamos abordar os riscos que são mais para o médio prazo, mas não são pequenos.
A tese que nos parece dominante é, basicamente, a queda consistente da inflação global que vem acompanhada de uma desaceleração apenas gradual da atividade. Pelas longas defasagens da política monetária, não está claro ainda se será um soft landing ou se veremos alguma desaceleração adicional (ainda que moderada) da demanda. De qualquer forma, essa distinção é mais semântica. Para efeitos práticos, o mais importante é que a inflação deve cair e o custo da atividade será baixo. O que é positivo.
A Figura 1 resume o que ocorreu com a inflação desde o começo da pandemia nos EUA – um comportamento comum em boa parte dos países do Ocidente. Em um primeiro momento, como sabemos, o que impulsiona a inflação é o forte crescimento nos preços dos bens que sofrem um duplo choque: a demanda se desloca para cima, devido aos estímulos fiscal e monetário e às restrições ao consumo de serviços, enquanto simultaneamente a oferta se desloca para baixo com a interrupção de várias cadeias produtivas. O que os banco centrais no mundo esperavam é que com a reabertura das atividades, esses choques revertessem e a inflação voltasse mais rapidamente ao patamar pré-pandemia. Não foi isso o que vimos.
Numa segunda fase, já com a reabertura e o início da retirada dos estímulos, a inflação de bens realmente cai mas a inflação de serviços segue subindo porque recebe um impulso de demanda com a reabertura e, claro, porque os estímulos foram gigantescos e seus efeitos perduram. Com isso, os núcleos de inflação realmente fazem um pico no 2º trimestre de 2022, mas a partir daí ficam praticamente de lado, acima dos 5,0% no caso do CPI. O Fed, surpreendido com essa resiliência e com receio do contágio sobre as expectativas de inflação, endurece a política e alonga o ciclo de alta nos juros. O processo de reabertura é longo, vai do fim dos lockdowns obrigatórios até a recuperação dos hábitos antigos, como a volta das viagens, a ida a restaurantes e, mais importante, a volta aos escritórios. Esse processo, com idas e vindas, impulsiona o setor de serviços até o início deste ano.
Com a demanda forte e depois do choque nos preços dos bens, as empresas no setor de serviços aproveitam para recompor margens e ajustar preços relativos. Além disso, o setor de serviços é muito mais intensivo em trabalho, o que pressiona mais o mercado de trabalho e ajuda na recomposição do salário real. Esse é um processo que ainda perdura, requer, é claro, atenção na política monetária, mas, conforme a demanda por serviços perde o impulso da reabertura e os preços relativos se ajustam, a inflação de serviços vem gradualmente para baixo, como vimos nos últimos meses na Figura 1. Nos próximos meses e adentrando 2024, teremos, no caso dos EUA, também a queda na variação dos aluguéis, ajudando esse processo.
Além disso, na demanda de bens, os efeitos da política monetária têm ficado cada vez mais claros. A isso, nos últimos meses, somam-se a normalização das cadeias produtivas e o crescimento sensivelmente menor da China no pós-pandemia (lembrando que o pós-Covid da China só começa no 2º Tri deste ano). O que nos leva a uma situação inversa à da primeira fase do pós-pandemia: temos agora um excedente de oferta em várias cadeias de produtos. Não à toa a inflação dos bens no atacado está negativa em boa parte dos países (no Brasil o IPA-DI está em -11% no yoy!) e o core de bens está dando mais um passo para baixo recentemente.
Assim, a partir de Junho deste ano, o núcleo da inflação americana começou a cair de maneira mais consistente como se vê na Fase 3 da Figura 1. Há, é claro, idas e vindas devido a choques idiossincráticos nas variações mensais, mas entramos numa fase em que a inflação de bens está acelerando para baixo e a de serviços cai de forma gradual, mas consistente.
Há poucos meses (em Junho), os membros do FOMC, ainda preocupados com a resiliência da inflação, projetavam que o core PCE terminaria o ano em elevados 3,9%. Mas, se a tendência que observamos nos últimos dois meses se mantiver (o que deve ocorrer), essa projeção estará mais para 3,3-3,5%, acelerando a convergência para a meta. Por isso, ainda que as próximas reuniões estejam em aberto e mesmo tendo em conta o discurso ainda cauteloso do Fed, parece provável que o ciclo de subida dos juros tenha terminado na reunião de Julho.
Nos EUA, essa queda na inflação tem vindo com uma desaceleração apenas suave da atividade (que segue rodando num crescimento anual acima de 2%). Não é à toa que soft landing virou o principal cenário nesses últimos meses.
Se a desaceleração da atividade seguir suave, mas os núcleos de inflação desenharem a queda que esperamos, provavelmente o Fed vai manter as taxas no patamar atual por um período longo. A queda na inflação eleva o juro real, o que colabora para desacelerar aos poucos a atividade e o mercado de trabalho. É um desenho tradicional de soft landing. E é um cenário positivo. Uma normalização lenta do policy, é verdade, mas provocada por dados ainda positivos na atividade.
Um outro cenário, que parece até mais provável, é com a atividade desacelerando um pouco mais. Os efeitos da política monetária ocorrem com defasagens, a oferta de crédito está contraindo, o estoque de poupança excedente é menor e o mercado de trabalho vai gradualmente se equilibrando. Aqui teríamos uma redução um pouco maior no crescimento do consumo ao longo do 1ºH24. Talvez não seja uma recessão, mas o hiato abriria mais. Com a inflação caindo de maneira consistente, manter as Fed Funds Rates constantes deixará o juro real muito alto nesse contexto. Viríamos, nesse cenário, queda nos juros já no 2º trimestre de 2023.
É essa virada no ciclo americano que justifica o comportamento positivo dos mercados a partir de abril. É uma história que ainda tem seus riscos (vamos tratar abaixo), mas é também uma história de desinflação e normalização do policy. Nos cenários mais prováveis ou a atividade segue bem e a queda nos juros demora um pouco mais ou a atividade desacelera mais e os juros já caem mais rápido. Isso tem implicações diferentes, claro, mas no geral os dois cenários são positivos para os emergentes.
É um evento raro nos últimos anos, mas desta vez o Brasil está na frente nesse trade de desinflação global. Basicamente porque a política monetária aqui foi bem calibrada, especialmente ao longo de 2022. Ter sido dos primeiros a perceber que havia um excedente explosivo de demanda lá em março de 2021 (1 ano antes do Fed) deu ao BC brasileiro as condições de também ser dos primeiros a baixar juros nessa fase de desinflação mais clara.
Afinal, guardadas algumas nuâncias, o mesmo fenômeno que descrevemos acima para os EUA, também ocorre por aqui. Inflação de bens e serviços desacelerando simultaneamente, contribuindo para núcleos de inflação menores.
Verdade que ainda há resiliência na inflação de serviços e que as expectativas mais longas ainda estão acima da meta, mas a tendência de queda da inflação vai se materializando ao longo desse semestre. Na Figura 2 colocamos nossa projeção de inflação YoY para os próximos meses. Perceba que a inflação de preços livres (são os afetados pela política monetária) já deve estar na meta de 3,0% no fim do ano. Nesse cenário, mesmo tendo em conta os riscos, nossa taxa real de juros está muito elevada. Por isso que entramos num longo ciclo de cortes de juros.
Do lado da atividade, os últimos dados também são mais animadores. Não tanto pelo PIB do 1º Trimestre, que foi basicamente agrícola (o que deve deixar o PIB ainda volátil nos próximos trimestres), mas mais pela projeção do que esperamos na demanda doméstica. Aqui, os dados recentes de crédito e mercado de trabalho estão melhores. Do lado do crédito, a contração na oferta às empresas tem sido menor do que esperávamos, provavelmente porque o desempenho da carteira nesse ciclo tem sido bom. Um reflexo disso é que nos últimos meses já começamos a ver a queda na inadimplência da carteira de crédito para as pequenas e médias empresas. Se esse movimento perdurar, a oferta de capital de giro melhorará, o que minimiza o risco de um aperto financeiro maior sobre as empresas. Isso tem implicações no emprego que, não à toa, tem mostrado sinais de estabilidade. Esse ponto é importante porque, se o emprego não piorar sensivelmente, as famílias terão condições de gradativamente irem pagando suas dívidas. A alavancagem elevada das famílias, muito penduradas no cartão de crédito, é o grande risco para baixo nesse ciclo. Esse risco ainda está por aí, mas hoje ele é menor.
Sem uma correção maior para baixo no consumo das famílias, a economia vai desenhando uma versão brasileira e quase inédita de soft landing. O pior momento no consumo seria entre o 2º e o 3º trimestres e a recuperação seria modesta até o final do ano. Se o vale é raso, os riscos sobre a recuperação são menores e, a partir de 2024 e com a queda nos juros acumulando, a demanda retoma. O ciclo positivo de lucros fica mais evidente.
Olhando para os preços, na bolsa, somos dos mercados mais descontados dentre os emergentes. O múltiplo dos papéis domésticos (Figura 3) está em nível compatível com as nossas grandes crises históricas (Dilma / Eleições 2018 / Covid) e estamos apenas no início de um processo longo de normalização de juros. Vale lembrar que a estrutura de endividamento das empresas brasileiras é largamente pós-fixada, então a reativação do mercado de crédito a taxas cada vez mais baixas vai começar a passar no resultado das empresas a partir do 2º Semestre. A combinação de demanda subindo com queda relevante nas despesas financeiras vai trazer um ciclo altista de lucros importante para essas empresas. E os preços das ações ainda estão muito distantes desse cenário.
Se a tese positiva que temos parece ser mais longa, o que explica a queda nos mercados de agosto? A causa, como sabemos, foi a abertura das Treasuries. Mais especificamente, foi a abertura dos yields longos (a curva inclinou) e foi um movimento mais concentrado no juro real (a inflação implícita longa também abriu, mas menos).
Se o movimento é mais nos juros reais longos, ele é menos ligado ao ciclo econômico ou à política monetária de curto prazo. De fato, a precificação dos aumentos de juros para as reuniões do FOMC deste ano subiu menos no período. O que é curioso, dado que uma discussão de política monetária ainda relevante é sobre o momento da parada. Mas não foi esse risco que o mercado colocou nos preços.
Um outro argumento está relacionado à taxa neutra de juros da economia americana. Essa é uma variável (não observada) que equilibra os fluxos de poupança e investimento no longo prazo, colocando a economia no equilíbrio de pleno emprego não inflacionário. Seria uma referência para onde os juros deveriam convergir no equilíbrio. Essa taxa veio caindo nos últimos anos e há um amplo debate entre os economistas se essa tendência não teria sido revertida com a pandemia. Em certo sentido as notícias desses últimos dias reforçaram essa possibilidade. Afinal, o crescimento resiliente e elevado da economia que temos visto e a necessidade crescente de financiamento do Tesouro americano expressa no último cronograma de leilões são alguns sinais de que esse pode ser um risco. Por outro lado, o envelhecimento da população e a (ainda) baixa produtividade seguem sendo fatores que comprimem essa taxa. Além disso, os modelos econométricos mais comumente utilizados sugerem que as taxas seguem hoje em níveis próximos ao imediato pré-pandemia.
Na verdade, essa só é uma explicação para a abertura do juro real longo porque a taxa neutra não é diretamente observada. Ninguém tem ainda uma resposta satisfatória para a dúvida se essa taxa está abrindo ou não. Só o tempo – e um período longo de estabilidade de inflação e crescimento – dirá.
Mas, independente das razões, quando olhamos para o nível, esse movimento já parece esticado. A taxa real de 10 anos hoje está em patamar compatível do período anterior à grande crise financeira de 2009 (Figura 4). Nesse período a produtividade era mais alta e o envelhecimento populacional pesava menos. As estimativas mostram que a taxa neutra nessa época estava próxima de 2,0% (contra 0,5 a 1,0% de hoje). Pode até ser que a taxa neutra esteja acima do nível do imediato pré pandemia, mas é bem mais difícil que estejamos próximos ao que tínhamos antes de 2009.
A melhor explicação para abertura dos yields, me parece, está na combinação de um mercado que vinha mais comprado nas Treasuries longas com os leilões um pouco maiores do Tesouro e com receio do que poderia ser o discurso de Powell em Jackson Hole – que não abordou os juros de longo prazo. Esses fatores, em um período em que os dados de atividade surpreenderam para cima, deixou o mercado mais propensos a uma correção. Isso, provavelmente, explica melhor a abertura recente de yields do que a tese de que o mercado “descobriu” nessas últimas semanas que a taxa neutra está mais alta.
Se for por aí, o que vai prevalecer é a tese mais longa e, acreditamos, mais bem fundamentada da volta do ciclo. O mercado deve voltar pra tendência positiva.
Se estamos corretos e esse movimento das Treasuries foi mais um ruído do que uma mudança de cenário, a dependência dos mercados locais com a história global ficou evidente no mês. Esse é um risco a se observar adiante. É verdade que o Brasil fez algum avanço com o arcabouço, que o desfecho da discussão das metas de inflação foi positivo e que a reforma tributária é um avanço fundamental no longo prazo. Mas a consolidação fiscal está incompleta e a agenda do governo é tímida, contando com aumentos na carga tributária que o Congresso hesita em aprovar. O que o mercado compra no Brasil é a recuperação no ciclo, não a melhora estrutural. E isso nos deixa mais dependente do ciclo global.
Por enquanto, apesar das oscilações, o ciclo global parece seguir ajudando. Nos EUA, a queda na inflação continuará ao longo deste semestre e a desaceleração da atividade deve vir, mas será gradual. O Fed está perto do fim (ou já no fim) e, ainda que mantenha um discurso hawk, a discussão vai virando para o momento do corte de juros. Trazer a inflação para a meta de 2,0%, entretanto, não será simples. Se a atividade desacelerar muito gradualmente, qualquer choque pode impulsionar a inflação novamente, o que levaria o Fed a retomar a subida nos juros e o final desse filme para o Brasil nós já conhecemos (o trailer passou por aqui em agosto).
O fato é que o soft landing é uma compra – quem não gosta de um cenário de juros caindo com atividade vindo bem? Mas o soft landing também não abre o hiato, o que deixa o ciclo e os mercados vulneráveis às surpresas inflacionárias.
A aceleração da inflação americana não parece um risco relevante no curto prazo pelas razões que apresentamos, muito pelo contrário. Nesse contexto, o mercado aqui tem um potencial elevado de ganhos para realizar nos próximos meses. Mas, se mais adiante, a atividade nos EUA acelerar ou se tomarmos um choque altista (que hoje parece improvável) na inflação, a dinâmica muda rapidamente. Nossa história está pendurada no ciclo americano. É isso que temos que olhar.