Carta Macro – Junho 2021


O que vai ocorrer com nossa economia e os mercados nos próximos meses depende quase que exclusivamente do nosso processo de vacinação. Afinal, pelo menos no curto prazo, os riscos globais estão menores. O Fed tem se mostrado confortável com os riscos inflacionários recentes e os últimos dados no mercado de trabalho americano abriram uma janela maior para as apostas de recuperação global. Essas apostas, entretanto, só irão para os países que aproveitarem este momento para vacinar sua população. 

Ainda que aos trancos, a vacinação por aqui tem avançado e a subida dos nossos mercados nesses últimos meses reflete isso. Há, no entanto, mais por vir. A posição inicial da economia brasileira nessa volta, o ambiente global dos próximos meses e até mesmo nossas vulnerabilidades, deixam a recuperação da economia muito elástica ao aumento da vacinação. Uma perspectiva mais positiva aqui ainda não está totalmente nos preços. Desenvolveremos esses pontos nessa carta. 

Um ciclo diferente 

Em um ciclo normal, os excessos da fase de expansão – alavancagem, desequilíbrios nas contas externas, inflação, etc – são corrigidos, via de regra, por crises financeiras ou pela ação da política econômica, o que provoca desaceleração na atividade. Por outro lado, a volta só ocorre quando a política torna-se expansionista e os excessos já estão corrigidos, o que abre caminho para um novo período de crescimento. Na crise financeira de 2009, por exemplo, a volta foi mais lenta nos países ricos porque seus sistemas financeiros estavam comprometidos e a política limitava os espaços para a expansão fiscal. Nos emergentes, esses empecilhos eram menores e a volta foi mais rápida. Anos depois, no Brasil, a volta da grande crise provocada pelos excessos do governo Dilma também levou tempo porque os bancos estavam com os balanços prejudicados. Mapear os ciclos – que é parte relevante do que fazemos – é um pouco monitorar esses excessos, seus ajustes e as reações de policy

Desta vez, entretanto, a história de início não foi bem essa. O choque brutal em março do ano passado não foi precedido por excesso algum. Pelo contrário, a economia global começava a desenhar uma aceleração e, por aqui, os bancos estavam com os balanços leves e o crédito começava a acelerar a atividade. Foi a pandemia que criou uma anormalidade no comportamento das pessoas e empresas, com a necessária restrição à mobilidade. De lá para cá, como esperado, os estímulos monetários e fiscais sem precedentes têm sustentado a atividade e a recuperação dos ativos. Uma vez que não houve excessos, também não houve as sequelas habituais e a recuperação pode ser rápida, e vimos os sinais disso ao longo do ano passado. Essa expansão, entretanto, só se tornará realmente sustentável quando a pandemia arrefecer a ponto das nossas atividades voltarem a alguma normalidade. Em outras palavras, o ciclo só ficará maduro com o acesso dos países à vacinação. Sem essa volta à normalidade, o risco intermitente de paradas impede uma recuperação mais definitiva dos ativos. 

Nos últimos meses, temos visto sinais fortes dessa recuperação pelo mundo, mas ainda carregada de assimetrias. Os países ricos usaram suas melhores condições para praticar políticas fiscais mais expansionistas, o que os ajudou a sustentar a atividade na transição. Além disso, ao pagar pelo custo do desenvolvimento das vacinas antecipadamente, eles as tiveram disponíveis antes e estão imunizando sua população mais rapidamente. A reabertura começou a ficar clara nos dados de março nos EUA e, ao longo deste segundo trimestre, a aceleração na Europa está ficando evidente. EUA e Europa estão rumo à normalidade, onde boa parte da Asia já estava (porque controlaram a pandemia mesmo sem a vacina), enquanto os demais emergentes ficaram para trás. A performance do mercado neste ano reflete isso. 

No caso brasileiro, somos ainda um dos retardatários entre os emergentes que ficaram para trás. Por uma combinação de subdesenvolvimento e incompetência, o país não conseguiu controlar a pandemia e ficou preso em uma armadilha de abre e fecha das atividades. Nossa fragilidade fiscal não permite estímulos por períodos longos e a continuidade da pandemia não apenas impede uma retomada consistente do ciclo de recuperação, mas também prejudica as perspectivas sobre o endividamento público. Essa combinação nos deixa como o país mais dependente da vacinação para completar o ciclo de recuperação. Nenhum outro país combina nossa incapacidade em controlar a pandemia com a nossa vulnerabilidade fiscal. Sem vacinas, o ciclo brasileiro não apenas fica pela metade, mas arriscamos entrar numa espiral recessiva provocada pelo excesso de endividamento. Por outro lado, se a vacinação engrena, seu efeito é transformacional para nossas perspectivas nesse ciclo. 

A boa notícia é que, apesar das trapalhadas do governo, as perspectivas para a vacinação são positivas. 

Razões para melhorar 

Há 3 razões para estarmos mais positivos sobre a vacinação: 

i) Vacinas, Idosos e Riscos de Nova Onda 

A razão mais imediata é que, com uma população preponderantemente jovem, o país, mesmo com um programa tímido de vacinação, já conseguiu vacinar cerca de 91% da população acima de 60 anos em primeira dose (53% em segunda). Podemos argumentar que poderia ter sido mais rápido (e poderia mesmo), mas esse contingente menor de idosos e a concentração de casos graves nesse grupo (são 50% das hospitalizações neste ano) nos favorece. 

Essa cobertura vacinal dos idosos já produziu efeitos, reduzindo os impactos da pandemia sobre as internações. Na figura abaixo, vemos como, conforme a vacinação avança, as taxas de internação dos grupos de maior idade vão se aproximando das taxas dos grupos mais novos. Com o atual estado de vacinação, o grupo de +80 anos está internando como antes pessoas de 60 a 69 anos internavam. Já os grupos de 60 a 79 anos têm internado como se tivessem entre 50 e 59 anos. 

Casos de Síndromes Respiratórias por 100 mil habitantes Média de 7 dias

Fonte: Ministério da Saúde 

Com a reabertura e a volta da mobilidade, as internações voltaram a subir a partir de maio, mas essa subida vem limitada porque essa parte da população que é mais vulnerável está sendo imunizada. Desenvolvemos um modelo para projetar internações de acordo com a evolução da pandemia e a vacinação em 1a dose. Por ele, com os grupos que já vacinamos,a pandemia teria que internar 100% a mais da população não imunizada hoje para que as hospitalizações atingissem o pico de março deste ano. E essa porcentagem vai subindo conforme a vacinação avança para outros grupos. A consequência econômica disso é que, daqui para a frente, podemos até ver lockdowns locais, mas a parada generalizada como a que ocorreu em março/abril parece improvável e, se ocorrer, seria por um tempo curto. 

ii) Ritmo de Vacinação 

A vacinação começou lenta até o final de março deste ano porque ela dependeu quase que exclusivamente da CoronaVac do Butantan. A partir de abril, a Fiocruz começou a entregar em escala sua produção e de lá pra cá lá vimos uma aceleração, com o ritmo oscilando para um patamar entre 400 e 600 mil doses diárias. Isso permitiu a vacinação em 1a dose de boa parte da população acima de 60 anos que destacamos. Mas, por nossos problemas de planejamento, concentramos a oferta nesse início em apenas dois fornecedores, ambos com insumos (IFAs) vindos da China. Esse ritmo de entrega foi irregular, o que deixou a vacinação sujeita a reduções na produção, consequentemente dificultando a distribuição. Alguns estados atrasaram a aplicação da 2a dose da CoronaVac pelos atrasos no IFA a partir do fim de abril. Mais recentemente, a Fiocruz também teve que rever suas expectativas de produção de junho pela mesma razão. Isso deve ter levado a um conservadorismo maior dos estados e municípios que agora tendem a reter uma parcela maior de vacinas em estoque para a 2a dose. 

A boa notícia é que os IFAs voltaram a ser entregues no final de maio e, mais importante, a partir de junho a oferta de vacinas da Pfizer começa a entrar em escala. A Pfizer diversificará mais nosso pool de vacinas e, até por suas dificuldades de armazenamento, deve ser totalmente utilizada assim que distribuída. Não à toa vimos uma aceleração mais recente na vacinação, com as aplicações em 1a dose chegando a 700 mil vacinas por dia. 

Vacinas Distribuídas – 1a Dose Até 2021-06-08 

Fonte: Números COVID-19 – @coronavirusbra1 (com dados das Secretarias Estaduais de Saúde) 

Pfizer, Butantan e Fiocruz somados devem ofertar cerca de 200M de doses entre Jun e Set; o dobro de tudo o que foi entregue até agora. Se essa escala se confirmar, teremos vacinado em 1a dose a população acima de 40 anos até o início de Setembro e toda a população adulta até o final de Outubro. 

iii) Mas e os riscos de oferta? 

Os desafios da indústria na produção de vacina têm sido gigantescos e, como vimos, sujeitos aos percalços que nos afetaram. Existem riscos, é claro, mas, olhando adiante, a demanda dos países ricos no 2o semestre deve ser menor e, mais importante ainda, a produção está escalando rapidamente nos fornecedores de quem dependeremos nos próximos meses. 

A Pfizer, que tem ancorado a vacinação bem sucedida nos EUA e Europa, entregou mundialmente 470 milhões de doses até o início de maio. Ao longo dos próximos meses essas entregas devem escalar. Estão fechados 1,6 bi de doses até o fim de 2021 e novos contratos virão, até porque a capacidade de produção da Pfizer está em 3,0 bi de doses neste ano. Foi por isso que o Brasil conseguiu entrar nessa fila, mesmo tendo começado a negociar tardiamente. Embora tenha um processo de produção complexo, a Pfizer não tem tido problemas de atrasos relevantes nas suas entregas. 

Na China, os números são ainda mais fortes. Depois de um início lento, o governo chinês colocou metas agressivas de vacinação, especialmente depois que a variante indiana começou a se espalhar por regiões da Ásia. A ideia é imunizar 40% da população até o fim de junho e 64% da população até o fim do ano. A China, até meados de março, vinha vacinando uma média abaixo de 1 milhão de pessoas/dia e exportando o excedente produzido de vacinas. A partir de então, a China passou a destinar uma parcela expressiva da sua capacidade para a vacinação doméstica, com a média de vacinação chegando próxima dos 5 milhões diários (que, até então, parecia ser sua capacidade de produção). De maio em diante, a capacidade produtiva escalou de maneira impressionante. Hoje os chineses estão vacinando 20 milhões de pessoas por dia. Eles devem atingir sua meta de imunização de junho com folga e, se seguirem nesse ritmo, terão vacinado 100% da sua população até meados de setembro. Estão em um ritmo muito acima da sua meta anual, portanto. Os chineses devem desacelerar sua vacinação doméstica ao longo dos próximos meses e disponibilizar uma parte maior dessa escala de produção, agora gigantesca, para a exportação, fortalecendo sua diplomacia das vacinas. Esses 20 milhões/dia representam uma capacidade de produção de 4,1 bilhões de doses no restante deste ano. Colocando de outra forma, daqui até o fim do ano, só a China produzirá o dobro de doses que o mundo todo aplicou até hoje. 

A produção maior da Pfizer e essa escalada na produção Chinesa vão disponibilizar mais vacinas para os emergentes no 2o semestre. Parece que a fila da vacinação vai finalmente começar a andar para os países mais pobres. A história de reabertura e aceleração no crescimento que estamos vendo nos EUA e Europa pode se repetir em outras localidades até o fim do ano. O Brasil, com a população idosa vacinada e agora com uma oferta de vacinas em fornecedores que estão escalando, parece bem posicionado. 

Os Efeitos sobre o Ciclo 

As consequências econômicas da vacinação ficam mais claras se partirmos da análise do PIB do 1o trimestre recém divulgado. Em parte pelo ótimo desempenho dos setores exportadores e em parte pela queda menor nas atividades provocada pelo lockdown, o PIB mostrou resiliência em um trimestre que teve dois choques negativos importantes: o fim do Auxílio Emergencial e o recrudescimento da pandemia. Se a economia não crescesse mais nada nos próximos trimestres, o carrego estatístico já garantiria um crescimento de 4,9% no ano. E é deste ponto de partida que temos que entender os efeitos da vacinação sobre a atividade. 

Os lockdowns foram curtos, com todos os estados já abertos ao final de abril. Nosso Nowcast (um preditor do PIB mensal) aponta para uma queda bastante moderada em abril – 0,15% – graças à recuperação rápida da mobilidade no decorrer do mês. A partir de maio, os números de mobilidade e de confiança sinalizam uma recuperação: nosso indicador preliminar aponta para um crescimento de 1,06% no mês. O carrego elevado e a rápida volta da atividade no decorrer de abril mostram que, se não houver uma nova onda, com lockdowns generalizados, o PIB deve ficar com folga acima de 5% no ano. O fato de os idosos já estarem vacinados em primeira dose ajuda, como vimos, a sustentar a previsão de que não teremos novos tombos na atividade. 

Mas não é só. Há ainda que se ter em conta o que dizíamos no início do texto. Essa foi uma crise que não veio precedida por excessos, o que significa que o balanço das famílias e empresas não vinham sobrecarregados quando a crise começou. Isso, em conjunto com as ações de policy no ano passado, permitiram que a inadimplência na carteira dos bancos esteja hoje em patamares historicamente baixos, tanto para as famílias, quanto para as empresas, mesmo com o abre e fecha nas atividades. Os bancos hoje estão leves e o crédito pode ajudar na recuperação. 

Evolução da Inadimplência Com ajuste sazonal 

Fonte: Banco Central do Brasil 

Uma outra forma de olhar para esse mesmo fenômeno é pela taxa de poupança doméstica, que cresceu substancialmente no período. Isso não é uma exclusividade do Brasil. Esse fenômeno ocorre em outros países e é uma característica desta crise. Do lado das empresas, a ajuda do governo e a contração de gastos correntes e capex ajudam a explicar algum excedente. Do lado das famílias, as políticas de transferências, a cautela e a impossibilidade de se gastar nas despesas usuais com a pandemia também elevaram a poupança no período. 

Taxa de Poupança Doméstica Média móvel de 4 trimestres 

Fonte: IBGE 

Essa poupança deve ter servido para mitigar parte da queda nas atividades provocada pelo último lockdown e ainda não se exauriu. O excesso de recursos poupados está acima do pré-pandemia e é bem provável que, com a normalização, ela venha a financiar gastos anteriormente reprimidos. Isso deve ser particularmente importante 

no consumo das famílias de renda acima da média, que preservaram renda, mas cortaram os gastos com viagem, restaurantes e outras formas de lazer porque a pandemia limitou o acesso a esses hábitos. É diwcil projetar a velocidade que essa demanda reprimida se manifestará – se vai se concentrar neste ano ou se distribuirá para 2022 – mas a vacinação é o catalizador para essa volta. Se ela for rápida, como esperamos, o PIB deste ano vai ficar mais para 6,0%. Veremos uma forte aceleração da economia e dos lucros das empresas nesses próximos meses. 

Implicações e Riscos 

Os riscos maiores parecem adiados. Pouco falamos aqui sobre nossa expectativa global, mas está claro que o Fed considera que a alta recente da inflação é transitória e, portanto, deve balizar o momento para reduzir sua compra de ativos (tapering) pelo mercado de trabalho. A boa notícia para nós é que os últimos dados do mercado de trabalho nos EUA apontam para uma recuperação mais lenta do que a inicialmente esperada, com a oferta de trabalho demorando a reagir devido às transferências que os americanos têm recebido do governo nos últimos meses. Isso distribui mais a recuperação, o que nos dá tempo, provavelmente até o fim deste ano, para o Fed começar a reduzir os estímulos. Enquanto isso, a liquidez global segue elevada com taxas reais de juros ainda perto das mínimas e as expectativas de inflação na curva de juros subindo, mas ainda em patamares abaixo do que o Fed consideraria adequado para tirar o pé do acelerador. Ganhamos tempo, o que é importante. 

Sem uma contração global de liquidez no horizonte (não no curto prazo), os nossos riscos fiscais ficam completamente dependentes da pandemia. Com a vacinação, a pressão agressiva para gastos impossíveis no arcabouço do teto ficam menores. Paulo Guedes e time parecem hoje em situação menos vulnerável e o risco de uma crise fiscal dobrando a esquina está saindo dos preços. A maior expansão do PIB nominal também ajuda na arrecadação e reduz o nível do endividamento. 

Claro que nossa vulnerabilidade fiscal segue lá, mas é preciso um choque de (des)confiança para que o mercado volte a apostar no descontrole da dívida pública. Com vacinação e a liquidez global ainda abundante, esse choque ficou postergado. Deve ser uma história para 22 – vamos voltar a esse assunto em breve – mas há muito por vir ainda até lá. 

Nos próximos meses, o grande parâmetro do mercado segue sendo a vacinação. A liquidez abundante, os preços ainda distorcidos pelos riscos de curto prazo e, especialmente, a aceleração do crescimento da economia e dos lucros das empresas com a vacinação tornam as ações brasileiras ainda baratas para o momento do ciclo. 

Somos provavelmente a economia mais vulnerável à trajetória da vacinação; o outro lado disso é que, se a vacinação avança, somos também um dos maiores upsides. Pelo menos no curto prazo.