Carta Macro – Janeiro 2023


O mau começo

Se alguém nos dissesse que Lula começaria seu governo escolhendo para conduzir a economia as 3 lideranças políticas que deram cara à frente única em sua campanha (Haddad/Alckmin/Tebet), que pediria uma licença para gastos de cerca de 150 bi, mas restrita a 2023 e que priorizaria no Congresso a reforma tributária em conjunto com uma proposta de nova âncora fiscal e medidas para conter o déficit de curto prazo, a avaliação provavelmente seria positiva.

Pois é, em certo sentido, esses fatos todos ocorreram desde que Lula venceu um apertado 2º Turno no fim de Outubro. Ainda assim, a avaliação desses primeiros dias, está muito longe de ser boa. Pelo contrário, Lula fez um mau começo e deixou oportunidades na mesa.

Afinal, esse é um jogo em que credibilidade faz diferença e para isso, a sequência dos eventos importa.

Lula começou a transição priorizando a PEC dos gastos. Faz sentido, afinal a PEC não apenas permite que ele cumpra as promessas mais importantes da campanha, mas também, ao aumentar os recursos disponíveis, ele ganhou condições de governabilidade em um Congresso fazendo o detox do Orçamento Secreto. Afinal, os gastos adicionais que a PEC permite são o atrativo para formar uma coalizão mais forte, em que a capacidade de estabelecer a agenda e compor maioria volta para o Executivo. Nesse sentido, em conjunto com a inconstitucionalidade do orçamento secreto decidida pelo Supremo, Lula conseguiu já de início estabelecer condições melhores de governabilidade, o que lhe permite trabalhar sua agenda no Congresso.

A questão, é claro, passa a ser qual é essa agenda? Na maneira atabalhoada como a PEC foi formulada, essa dúvida ficou maior. A decisão aqui foi completamente política, sem nenhum parâmetro técnico. Sem considerar os custos fiscais, houve momentos na negociação em que a PEC chegava a 200 bi e era permanente, o que retirava completamente os incentivos para o governo mandar uma nova âncora fiscal. Pior que isso, ao fazer a defesa política da PEC, Lula fez seus discursos atrapalhados em que sinalizava a prioridade da agenda social sobre a fiscal – como se elas fossem excludentes. Nesse começo houve um misto de amadorismo com soberba.

A PEC realmente é decisiva para a governabilidade nesse início e fazia sentido ter uma margem pra negociação, mas ao pedir tão pra cima, sem deixar claro como essa conta vai ser paga, o novo governo criou suspeitas justificáveis sobre qual será sua agenda. No final, a Câmara colocou limites nesse jogo de forças, os técnicos foram um pouco mais ouvidos e a PEC saiu menor (ainda que o montante seja elevado) e limitada a 1 ano. Com isso a nova regra fiscal passa a ter prioridade nessa agenda, mas o governo já abriu um gap de credibilidade importante. Não é preciso lembrar a tragédia econômica que a agenda nacional desenvolvimentista do governo Dilma nos colocou há poucos anos. A tramitação da PEC e a defesa do governo por mais gastos faz lembrar aquele período.

O governo poderia fechar esse déficit de credibilidade na escolha do seu time econômico. O trio Haddad/Tebet/Alckmin pode funcionar, mas a sequência aqui também não ajudou. Para a posição de mais destaque, Lula escolheu Haddad que é, das lideranças do  partido, talvez aquele em que Lula mais confie. Haddad fez uma boa gestão nas finanças da prefeitura de São Paulo. Guardada as devidas proporções é um sinal de que ele tratará com cuidado do equilíbrio fiscal e suas primeiras declarações vão todas nessa linha. Haddad, entretanto, também foi o candidato a presidência em 2018 liderando uma plataforma mais radical. Aquela foi uma eleição em que o PT disputou menos pra ganhar e mais pra defender o Lula Livre e o diálogo maior era com os movimentos sociais. Argumento adiante que Haddad provavelmente vai entregar o que tem defendido – uma reforma tributária que aumente a produtividade da economia brasileira, regras fiscais que sinalizem o controle do endividamento e o aumento de tributação combinado a algum mecanismo de controle de gastos que tornem essas regras críveis – mas, aos olhos de hoje e com a reputação que ele, com justiça ou não, carrega desde 2018, muitos ainda suspeitam que não será essa a agenda.

A equipe que Haddad formou também não ajuda muito a recompor a credibilidade. É verdade que Bernard Appy é hoje o melhor quadro no país para conduzir a reforma tributária. Haddad também se cercou de secretários que o ajudaram a promover o ajuste no município de São Paulo, todos comprometidos com o equilíbrio fiscal, o que é positivo. Mas aquele que tem experiência de formulação na sua equipe é Guilherme Mello. Ainda que ele venha defendendo a necessidade de uma regra fiscal, os detalhes aqui importam. E Mello se alinha mais com a política econômica de Dilma do que de Lula I. Essa ambiguidade na equipe não ajuda.

Resta entender o papel de Alckmin e Tebet. Aqui há condições para se fazer uma bela limonada, mas de início, o que temos são apenas os limões. Afinal não parece que foi uma estratégia pensada a de refletir a diversidade da frente únicas nos principais cargos da equipe econômica.

Alckmin foi para o MDIC porque os demais nomes convidados pelo governo (todos empresários) não quiseram ir – vale lembrar que, antes de anunciar o ministro, Lula anunciou Mercadante no BNDES que, em teoria, está abaixo do MDIC. Alckmin deve cumprir um papel importante lá. Serve no mínimo de garantia de que a política industrial agressiva via bancos públicos não deve voltar (por enquanto) e vai participar da formulação econômica. Mas não era o desenho inicial que Lula tinha em mente.

Já no caso de Tebet, o argumento é um pouco melhor. Realmente Lula queria um ministro no Planejamento que não fosse do PT e que estabelecesse um debate (muitas vezes um contraponto) às visões da Fazenda. Numa analogia imperfeita ele teve isso em seu primeiro governo, com Palocci na Fazenda, Mantega no Planejamento e Lessa no BNDES. É imperfeito porque Haddad deve ser mais comprometido com  o ajuste fiscal do que Mantega ou Lessa, mas, assim como no primeiro mandato, suas eventuais diferenças com Tebet e Alckmin vão permitir a Lula o papel de arbitro. O problema é que Tebet também não foi a primeira escolha e seu nome só prevaleceu, de acordo com a imprensa, depois que André Lara Resende – que hoje tem um pensamento muito mais heterodoxo – recusou.

No fim dessa transição tumultuada, Lula aumentou suas condições de governabilidade no Congresso mas aumentou também a urgência de um ajuste fiscal devido a expansão de gastos promovida pela PEC. Nesse processo cresceram as dúvidas se o governo dará a prioridade necessária à estabilidade fiscal. Com o tamanho que saiu do Congresso, a PEC promove uma expansão nos gastos, mas ela é equacionável. Até porque agora o governo tem base para tomar medidas mais duras. Ainda assim, falta dizer a que veio.

Quanto à equipe, ainda que o desenho final para as pastas econômicas seja interessante, o processo foi todo atribulado e fica a dúvida se Lula queria realmente montar um time econômico que reflita na política econômica a frente que o apoiou ou se só fez isso pela ausência de outras opções mais heterodoxas.

Enfim, o grande problema que o governo gerou para si próprio nesse mau começo não foi a PEC aprovada ou mesmo o time que tocará a economia. Foi, na verdade, os sinais contraditórios em relação a seu compromisso com o equilíbrio fiscal em um contexto de uma dívida pública elevada e crescente. Lula ganhou em governabilidade, mas vai usar isso para quê? Qual será sua agenda? O problema nesse início de governo, é que ele perdeu o benefício da dúvida. 

O pano de fundo é positivo

Se, por um lado, Lula teve um começo difícil, criando dúvidas sobre como conduzirá a economia, por outro, os momentos dos ciclos lá fora e, especialmente aqui, parecem propícios para tomarmos mais riscos.

Começando pelo ambiente global, dois fatos novos nesses últimos meses são importantes para desenhar um cenário mais positivo.

Primeiro, há sinais de que a inflação nos EUA fez um pico, consolidando desde outubro uma queda consistente, ainda que gradual, como descrito na Figura 1. Essa queda no core CPI nos últimos meses dá tempo para que o mercado de trabalho desacelere. Este, por sinal,  ainda que muito aquecido, também mostra sinais de desaceleração em reposta ao aperto nas condições financeiras (Figura 2). Horas médias trabalhadas, em particular, estão voltando bem. O risco de uma espiral inflacionária via salários hoje parece muito menor, o que deixa a taxa terminal de juros para esse ciclo – algo entre 5,0 e 5,25 – mais previsível.

Fonte: BLS

Fonte: BLS

A inflação corrente mais baixa mostra que há tempo para consolidar essa desaceleração no mercado de trabalho, reduzindo o risco de uma espiral de salários e preços. Ou seja, quando se pensa em cenários para a taxa de juros americanas, os desfechos negativos mais extremos ficaram improváveis. Isso equilibra os riscos e dá uma idéia mais precisa sobre qual a taxa terminal. Se sabemos com mais precisão onde termina, os cenários de juros mais baixos ganham probabilidade e o mercado está fazendo uma reprecificação importante nas taxas longas e no valor do USD (Figura 3).

Fonte: BBG

A isso se somam os sinais de virada na China. Demorou um pouco, mas a ômicron destruiu a estratégia de Covid-Zero do governo chinês. De novembro para cá, o governo retirou rapidamente as restrições sanitárias e de mobilidade mais draconianas. Além disso, já não é de hoje que o governo tem acelerado as medidas de estímulo e reduzido os ruídos regulatórios. Apesar do aumento da Covid em um primeiro momento desacelerar ainda mais a economia, está claro que a política econômica está hoje orientada para a recuperação. Os primeiros sinais de melhora na mobilidade começaram a aparecer no fim do ano. Devemos ver uma recuperação importante ao longo desse primeiro trimestre.

Essa combinação de perspectivas de virada na China com os riscos menores sobre o tamanho do aperto monetário nos EUA formam uma boa combinação para emergentes (Figura 4). Claro que, ainda estamos nos primeiros estágios e há riscos relevantes adiante, especialmente sobre o tamanho da recessão nos EUA, mas esses podem ser os primeiros sinais de uma virada importante no ciclo de emergentes. 

Fonte: BBG

Quanto ao ciclo doméstico, os últimos dados também reforçam a idéia de desinflação, com a vantagem que o nosso BC está mais adiantado no ciclo.

Essa maior tempestividade do BC se reflete nos dados de atividade, que já mostra sinais claros de desaceleração nos últimos meses. Juros reais mais altos vêm restringindo o crédito para as famílias e, mais recentemente, para as empresas. Isso começa a tirar o ímpeto do mercado de trabalho e entramos naquele estágio do ciclo em que crédito, confiança  e mercado de trabalho se alinham para baixo. A atividade está vindo para baixo.

Fonte: Safari

A menor atividade aqui e lá fora começa a se refletir nos preços. A inflação já há 3 meses tem mostrado um processo bem mais benigno, em parte pela queda nos bens industrias, mas também com sinais promissores de queda nos núcleos de serviços.

Fonte: Banco Central

São sinais de que a economia está entrando num processo de queda consistente da inflação. Nesse ponto, em ciclos normais, os juros mais longos fazem um pico e os ativos domésticos  começam uma recuperação. Com os primeiros sinais de virada também no ciclo de emergentes, esse processo viria acelerado. 

Mas, com nossa elevada dívida pública, um ciclo normal pressupõe que não entraremos novamente em aventuras heterodoxas no fiscal. E foi essa a dúvida que o governo plantou nessas primeiras semanas. Isso abortou qualquer recuperação dos mercados, ainda que os dados econômicos apontassem nessa direção.

O que esperar

Antes de mais nada, esse é um governo que, na hipótese ruim, vai voltar a abraçar o velho nacional desenvolvimentismo (recentemente conhecido como Dilma1) ou, na hipótese boa, vai ser um governo mais tradicional de centro-esquerda com mais gastos sociais financiados por mais impostos. A solução de corte de gastos e corte de impostos nunca esteve na mesa.

A diferença entre as duas hipóteses é que, na primeira, não há preocupação com o equilíbrio fiscal. Afinal, por essa linha, mais gastos do governo elevariam o crescimento e, portanto, a arrecadação, reequilibrando as contas. O Brasil sempre foi um grande laboratório para essa experiência que, obviamente, fracassou todas as vezes, sendo a última e mais espalhafatosa no governo Dilma.  

Já o caminho da centro-esquerda talvez não seja o ótimo para um país que já tem uma carga tributária elevada,  mas é muito melhor que o Dilma1 porque o aumento de impostos vem para equilibrar o fiscal.

A PEC e os discursos iniciais de Lula trouxeram para os preços o risco de que o governo caminhe novamente para o desastre fiscal. Até porque só se falou de gastos até então. Aliás, de acordo com o próprio Lula, não se deve mais chamar gastos de gastos, mas de investimentos, o que dá uma idéia de como esse governo gosta de gastar.

Mas, ainda que com riscos maiores, esse não parece o caminho mais provável olhando adiante. Apesar da retórica difícil, das pressões do PT e de um certo deslumbramento pós-vitória, Lula tem um espaço estreito na política. A eleição mostrou uma sociedade dividida, o apoio popular inicial de Lula está mais baixo do que em outras presidência e os eventos bizonhos e lamentáveis do dia 8 de janeiro mostram uma oposição radical e mobilizada.

Nesse contexto, Lula depende da popularidade para governar. Isso o deixa propenso a cumprir as promessas de campanha (daí a PEC dos gastos), mas também não permite que ele arrisque muito em perder a economia. Os partidos de centro que entraram na coalizão percebem essa instabilidade com clareza e mantêm os pés em duas canoas. O União Brasil ganhou 3 ministérios mas já se declara neutro de partida e o PSD, que se aproxima do governo em Brasília, é o partido que, nos estados, dá suporte para duas das principais candidaturas de oposição se o bem-vindo ocaso do bolsonarismo prevalecer: Tarcisio e Ratinho Júnior. A coalizão vai ajudar no curto prazo, mas ela é frágil. Lula não tem muito espaço pra erros.

Aqui podemos entender o discurso e as primeiras medidas anunciadas recentemente por Haddad. Depois de arrumar o espaço para mais gastos com a PEC, o objetivo agora é reduzir o déficit deste ano e aumentar a arrecadação nos anos subsequentes. Parte das medidas tem resultado incerto, mas uma queda no déficit deste ano para algo um pouco abaixo de 1,0% do PIB parece plausível. E há um aumento crível na arrecadação permanente (exclusão do ICMS da base do crédito de Pis-Cofins, reoneração nos combustíveis e reestimativa das receitas) da ordem de 1,1% do PIB. Ainda não é o suficiente e terá de ser complementado por uma regra de controles de gastos e por ganhos de arrecadação também na reforma tributária, mas o mais importante é o sinal de que o governo quer reequilibrar suas contas.

Nesse ponto, é bom lembrar que o principal ativo que Haddad teve para se tornar ministro é que, muito mais do que os outros ministeriáveis, Haddad é Lula. Pode haver divergências sobre uma ou outra medida, mas se Lula não apoiasse essa estratégia, Haddad não caminharia para tentar ajustar as contas.

O fato de Lula e Haddad serem alinhados é uma vantagem, mas também representa o maior risco. A decisão, mais do que em qualquer outro governo, é do presidente. Nesse contexto, ainda que a decisão de reequilibrar o fiscal pareça legítima, a convicção é um problema, especialmente para um governo que tem um déficit importante de credibilidade nesse campo. Há setores importantes do PT que irão defender expansões adicionais de gastos, que serão seletivos nas reduções das desonerações ou que pressionarão pelo uso mais indiscriminado dos bancos públicos para estimular a economia. E, vamos combinar, Lula adoraria seguir esse caminho se não houvesse restrições. O que o impede é o risco de perder a economia. Mas isso implica uma retórica por vezes ambígua e alguma tibieza ou postergação na tomada de medidas importantes, como no caso da reoneração dos combustíveis. Não tira o governo do objetivo de controlar o fiscal, mas deixa o cenário mais volátil e não afasta os cenários mais negativos completamente.

Ao longo de toda a campanha, uma das máximas repetidas a exaustão por Lula foi que ele colocaria o “pobre no orçamento e o rico no imposto de renda”. O pobre no orçamento (e os recursos para a governabilidade) ele conseguiu com a PEC, agora parece que o governo trabalha o reequilíbrio, via, principalmente, o aumento de impostos. Não é, definitivamente, a solução ótima e não prescinde de uma regra de controle de gastos (ainda que mais flexível que o teto).

Entretanto, a seu jeito, Lula sinaliza com essa declaração um compromisso em não desequilibrar as contas. Aos trancos, parece que ele está caminhando para isso.

O momento global começa a melhorar e a trajetória de queda na inflação por aqui está se consolidando. Há sinais claros de virada para a parte boa do ciclo. Se, realmente, o governo sinalizar um compromisso fiscal mais crível, o mercado está barato. Será um grande sub-ótimo, não há dúvida, e os riscos estão maiores do que há 3 meses, mas os preços hoje estão a níveis de crise e há espaço para uma correção que reflita, pelo menos, um ciclo normal de recuperação dos ativos brasileiros.