Não é novidade que os preços das carnes explodiram nos últimos anos aqui no Brasil. De 2004 a 2018, a variação média anual do preço da carcaça casada (média ponderada dos cortes do boi: traseiro, dianteiro e ponta de agulha) foi de cerca de 8%. Já nos últimos 3 anos (2018- 2021), a variação média foi de 26%. Parte desse movimento é explicado pela desvalorização do real, mas isso não foi exclusividade do Brasil e nem da carne bovina. De forma geral, os preços de carne dispararam no mundo todo.
Obviamente, são diversas as variáveis que explicam este comportamento. Do lado da oferta, a carne bovina passou por alguns desafios nos últimos anos, com a Austrália – um dos maiores exportadores – tendo tido anos difíceis impactados por secas e enchentes, que reduziram de forma significativa o seu rebanho. O Brasil está passando por uma forte retenção de fêmeas – deixam de ir para o abate –, ou seja, estamos no ciclo negativo de disponibilidade animal. E os EUA, estão com uma demanda doméstica muito forte por carne bovina, mas não conseguem aumentar sua produção dada a restrição de mão de obra no país. No entanto, chamamos a atenção para uma mudança interessante que vem acontecendo na demanda, mais especificamente no crescimento do consumo de carne bovina nos países asiáticos.
Em 2019, a tão comentada Febre Suína Africana (ASF) dizimou metade do plantel de suínos da China, fazendo com que a oferta global de proteínas ficasse mais escassa. Só para se ter ideia da magnitude do impacto desse evento, a carne suína é a mais consumida do mundo e a China era responsável por metade da produção e do consumo globais.
Nem se a China conseguisse importar todo a carne suína disponível para exportação do mundo, seria possível suprir a queda da sua produção local. Portanto, os 1,4 bilhão de chineses tiveram que recorrer a outras proteínas para suprir esse gap. Para isso, o governo chinês habilitou importação de diversas plantas localizadas em vários países, e o Brasil, grande exportador de carnes de aves e bovina, beneficiou-se disso.
Quem assistiu a série coreana Round 6 (Squid Game), que virou febre e bateu o recorde da Netflix, viu bons exemplos de como a carne bovina é aspiracional na Coréia do Sul. Aqui, chamo atenção para duas cenas: A primeira quando o protagonista Seong Gi-Hun leva sua filha para jantar “Tteokbokki” (um prato popular coreano de massa de arroz) no seu aniversário e fica incrédulo quando ela conta que o padrasto a levou para comer um “steak”. E a segunda, e ainda mais clara, é o foco no prato servido no último banquete dos jogadores que é um T-steak, servido apenas com alguns aspargos.
Em diversos países e culturas a carne bovina é aspiracional e tende a crescer conforme a renda per capita cresça. Hoje os países com maior consumo per capita estão no ocidente, mas a grande oportunidade está nos países orientais, e a China deve liderar esse crescimento, dada a sua relevância populacional. Mas é válido ressaltar que o crescimento asiático não está concentrado em um único país.
O aumento do consumo per capita de carne bovina na China vem aumentando, gradualmente, ao longo dos últimos anos, conforme mais pessoas são introduzidas na classe média, a urbanização ganha espaço e os hábitos ocidentais sejam adotados.
Uma das conquistas que o crescimento chinês trouxe nos últimos anos foi a importante ampliação da classe média. Nos últimos 10 anos, a China conseguiu sair de 3% da população classificada como classe média (Lower Middle recebe entre US$10-US$20 por dia e Upper Middle recebe entre US$20-US$50 por dia) para cerca de 52%.
O chinês ainda consome pouca carne bovina se comparado com o consumo das demais proteínas e, obviamente, precisamos levar em conta os hábitos orientais de consumo. Dificilmente o consumo/capita chinês alcançará o consumo dos países ocidentais no curto/médio prazo. Mas a força da carne bovina nos últimos anos tem mostrado o grande potencial do aumento de penetração nos países asiáticos.
Nossa estimativa é que a classe média chinesa coma hoje por volta de 9kg/capita/ano de carne bovina. A disrupção da oferta de suínos a partir de 2018 foi um catalisador para o crescimento deste consumo, especialmente na população de renda mais alta que tem o poder aquisitivo, mas que tinha barreiras culturais. A dificuldade de encontrar carne suína e os preços mais elevados levaram esse público a experimentar e consumir outras proteínas.
Outro ponto interessante é que, tradicionalmente, a carne bovina é mais consumida fora de casa na China. Os chineses tinham pouca prática e costume de cozinhar esta carne em suas residências. Mas a pandemia do Coronavírus que assolou o mundo e levou todas as pessoas para dentro de suas casas, fez com que os chineses se aventurassem na cozinha e aprendessem receitas novas.
Uma possibilidade para o mundo “pós Febre Suína Africana” seria a volta aos antigos hábitos de consumo na China. Os chineses, que mudaram seus hábitos alimentares de forma pontual, apenas para suprir o gap da carne suína, poderiam voltar atrás assim que esta estivesse amplamente disponível a preços normalizados. Dessa forma o aumento do consumo/capita observado na carne bovina poderia retroagir e voltar para os antigos níveis de 2018.
No entanto, o que chamou a atenção este ano foi o comportamento dos preços da carne bovina no atacado chinês diante de uma queda importante do preço da carne suína, que continua sendo a proteína preferida no país. O plantel de suínos se recompôs e sua produção está mais profissionalizada. A produção de carne suína na China atingiu, no terceiro trimestre, seu maior nível em 3 anos, gerando inclusive uma sobreoferta importante – isso tem inclusive obrigado o governo a regular o mercado com a compra de produção para formação de estoques. Ainda que o preço do suíno tenha voltado para os níveis de 2018, a carne bovina segue firme em patamar elevado.
Além disso, até setembro, as importações de carne bovina na China bateram recorde, com forte crescimento, enquanto as importações de carne suína caíram para o menor nível em 2 anos.
O ciclo completo do boi é longo (no mínimo 3 anos), portanto aumentar a produção de carne bovina não é trivial. A China aumentou em torno de 10% sua produção de carne bovina de 2018 a 2021, não sendo o suficiente para suprir o crescimento de 29% do consumo doméstico. O país então recorreu à importação, que hoje responde por 30% do consumo interno.
Dentre os países mais relevantes nas importações chinesas de 2021, o Brasil lidera com cerca de 40%, seguido por Argentina (16%), Uruguai (10%) e Estados Unidos (10%).
A China (somada a Hong Kong) ganhou uma relevância impressionante nas exportações de carne bovina brasileira nos últimos anos, saindo de 24% em 2015 para 64% no acumulado de 2021.
Conseguimos ver pelas nossas exportações que a China foi bastante agressiva em suas compras nos últimos meses, apesar de estar passando por uma situação complicada de sobreoferta de carne suína. Bateu recorde em volumes importados do Brasil em setembro e com preços subindo mês a mês ao longo de 2021.
A regularização da produção de suínos sobreofertou o mercado chinês e derrubou os preços. No entanto, o preço doméstico da carne bovina seguiu firme e as importações também.
Este comportamento recente do consumo chinês nos leva a pensar que a carne bovina, de fato, pode ter criado raízes nos novos hábitos chineses, e, se for estrutural, um grande suporte de preços globais de carne bovina pode ter sido conquistado.
Desde o início do mês de setembro/21 as exportações de carne bovina brasileira para a China estão suspensas, devido à confirmação de dois casos atípicos de Vaca Louca. Semelhante ao evento que aconteceu em 2019, analistas do setor esperavam que a reabertura fosse acontecer em torno de 15 dias após a paralisação, uma vez que foi confirmado o caso atípico da doença (ocorrência de forma espontânea e esporádica devido à idade avançada do animal, e não por ingestão de alimento contaminado).
No entanto, a persistência do veto vem aumentando a preocupação do setor que está há 2 meses sem seu principal importador de carne bovina. As principais teorias para o comportamento chinês vão desde táticas comerciais para negociar preços até estratégia chinesa para reduzir os estoques de carne suína.
Mesmo diante dessas hipóteses, parece claro que a China não consegue suprir sua demanda interna sem as importações brasileiras; se estivermos certos de que o crescimento da demanda chinesa é, de fato, estrutural, a China deveria reabrir nas próximos semanas a tempo de negociar as compras de carne para o fim do ano e o ano novo chinês.
A China está com altos estoques de carne suína e fez grandes importações de carne bovina nos últimos meses (a importação de setembro foi 43% maior do que a média dos últimos 12 meses). Essa pausa pode sim ser para acomodar seus estoques internos e negociar preços melhores.
No entanto, o que pode mudar todo o cenário e destruir a teoria de crescimento estrutural do consumo de carne bovina na China seria se o governo quiser dificultar as importações a fim de reduzir sua dependência externa também.
O interesse governamental pode ser bastante diferente do interesse da população, e na China, o primeiro deve prevalecer. Se o governo quiser moldar o gosto do consumidor, ele fará isso e reduzirá estruturalmente as importações.
Caberá ao Brasil interpretar e negociar com o governo chinês, da melhor forma possível. Mas além disso e talvez mais importante, caberá ao governo brasileiro negociar com os demais países asiáticos, que também concentram boas oportunidades, e abrir novas fronteiras comerciais para reduzir a dependência de um importador tão relevante, mas instável.
Referências e Bases de dados:
US Department of Agriculture (USDA)
General Administration of Customs People’s Republic of China (GAAC)
SECEX – Secretaria de Comércio Exterior
World Bank
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