Depois de um começo de ano difícil, nas últimas semanas estamos vendo, finalmente, alguns sinais mais positivos. De fevereiro para cá, os mercados viveram praticamente um ciclo econômico inteiro em poucos meses. Os dados atipicamente fortes na economia americana no início do ano – parte por causa do inverno mais quente, parte devida aos problemas dos métodos de dessazonalização – elevaram o risco de que a economia estivesse acelerando, o que demandaria mais aumento de juros, provocando quedas fortes em todos os mercados. A isso seguiu-se, quase imediatamente, a crise nos bancos regionais americanos, que trouxe o risco de uma crise financeira para os preços. Nesses últimos dias, os mercados começaram a ensaiar uma recuperação em larga medida motivada pela perspectiva do fim dos aumentos de juros nos países ricos. Fomos do super aquecimento para a depressão e estabilizamos, agora, numa volta de ciclo. Tudo isso em 3 meses.
O comportamento da curva de juros nos EUA ilustra bem o que atravessamos. No começo de março, assustado com o que parecia uma aceleração no crescimento, o mercado chegou a precificar que o Fed aceleraria os aumentos de juros e pararia próximo a 5,5-5,75%. No final do mês, o susto era outro. Os riscos de uma crise financeira levaram à perspectiva de parada na mesma reunião de março e os cortes começariam já em junho, terminando o ano a 3,0-3,25%. O mercado só estabilizou quando os riscos dos bancos regionais americanos diminuíram, o que permitiu ao Fed uma decisão mais intermediária, sinalizando a parada no ciclo na última reunião.
Essa bipolaridade dos cenários afetou os mercados globais e é a maior responsável pela oscilação nos preços dos ativos em todo o mundo, mas no Brasil o governo também teve seu papel. Tivemos até progressos, com o anúncio do arcabouço fiscal, das metas de primário e das primeiras medidas tributárias. Ainda é uma agenda incompleta (e com buracos), mas é um avanço. Se o policy melhorou, o discurso, por outro lado, foi um desastre. Desde janeiro, o governo entrou em uma cruzada retórica contra os mercados, o BC, os juros e por aí vai. O efeito foi a piora nas expectativas de inflação mais longas, mesmo com a melhora na perspectiva fiscal, o que postergou o início do ciclo de cortes de juros por aqui.
A questão para gente é: nesse horizonte extenso de possibilidades que o mercado testou desde o início do ano, qual o cenário que vai prevalecer? Para responder a isso temos que tentar entender para onde o ciclo global está nos levando, se há potencial significativo de melhora para os ativos brasileiros nesse cenário e quais os riscos que as escolhas e o discurso do governo impõem. É isso que vamos tentar fazer adiante.
A história global é boa. Basicamente porque a economia americana está, aos poucos, trilhando a queda da inflação, num caminho mais intermediário em relação aos extremos que se chegou a projetar nesses últimos meses. Ela não está acelerando, como os dados de janeiro pareciam indicar, mas tampouco devemos ter uma crise financeira provocada pelos bancos regionais agora que os depósitos dessas instituições estabilizaram. Esses riscos não estão, claro, totalmente para trás e sempre há riscos novos, como o debate em torno do debt ceiling, mas a discussão mais relevante hoje é sobre a velocidade de desaceleração/desinflação da economia americana.
A inflação nos EUA (e em boa parte do mundo) apresenta uma queda importante – o PCE de 12 meses saiu de um pico de 7% no meio do ano passado para 4,2% em março deste ano. Esse período foi caracterizado pela redução expressiva na inflação de bens (commodities inclusive), daí a queda no índice cheio. Já se olharmos para o núcleo (retirando alimentação e energia), a queda é modesta – saindo de um pico de 5,4% em fev22 para os atuais 4,2% – e é essa resiliência nos núcleos que vai determinar o ritmo da política monetária adiante.
A queda menor no núcleo deve-se à inflação de serviços. Na Figura 1 quebramos o núcleo em serviços e bens. Fica claro que a inflação de bens veio rapidamente pra baixo, enquanto que a inflação de serviços segue resiliente. É um comportamento esperado. A inflação de bens está corrigindo os exageros do período da pandemia, quando o excesso de demanda, estoques baixos e depois a guerra levaram a uma explosão de preços. Com a reabertura, estamos vendo uma normalização. Já os serviços são mais resistentes porque ainda contam com o impulso de demanda, que ficou restrita durante a pandemia, e sofre com as pressões de salário advindas de um mercado de trabalho muito apertado.
A questão, claro, é se a inflação de serviços vai cair. As despesas com moradia devem vir para baixo porque os contratos de aluguéis na margem estão com reajustes muito menores. Mas os serviços ex-housing (que é o maior componente, pesando 77% no core de serviços do PCE) está basicamente de lado, muito próximo dos picos. Não é à toa que o Fed tem chamado a atenção para esse componente da inflação. Aqui é o excedente de demanda, especialmente no mercado de trabalho, que explica esse patamar mais alto. Vai ser da desaceleração do mercado de trabalho, principalmente através dos seus efeitos sobre a inflação de serviços que veremos a segunda pernada para baixo na inflação, consolidando o processo.
Nesse sentido, os dados animam um pouco mais. Nos últimos meses temos visto um mercado de trabalho ainda apertado, mas com uma desaceleração consistente. As contratações e os postos em aberto vão gradualmente diminuindo e há uma recuperação na oferta nos últimos meses com o aumento na taxa de participação. Há sim um excesso de demanda relevante no mercado de trabalho, mas ele tem diminuído a cada mês. Isso terá impactos nos salários (Figura 2) o que ajuda a trazer, ao longo do tempo, a inflação de serviços para baixo.
É essa trajetória de desaceleração do mercado de trabalho que dá consistência ao processo de desinflação. É por isso que o Fed deve parar a subida nos juros, provavelmente já na próxima reunião, esperando que o aperto nos juros reais que ele já promoveu seja suficiente para consolidar o processo.
A questão, claro, são os custos e o tempo. O aumento nos juros e a cautela crescente dos bancos estão contraindo ainda mais o crédito. Isso vai bater no emprego (Figura 3) mas há defasagens. Além disso, não há excessos de alavancagem nas famílias e empresas (pelo contrário, a poupança doméstica subiu muito na pandemia), o que deve deixar esse ciclo mais suave do que os últimos. Isso aponta para uma desaceleração gradual (mas crescente) tanto do emprego quanto da inflação de serviços. Um cenário em que o Fed espera um pouco mais para iniciar o ciclo de cortes, mais do que está na curva. Mas sem uma queda abrupta da atividade.
Ainda que a curva vá, provavelmente, corrigir o ponto de cortes, o mais importante para os Emergentes é que o cenário de atividade e inflação nos EUA está afunilando os riscos. Pode demorar um pouco mais para os cortes do Fed chegarem, mas isso viria como consequência de uma desaceleração bastante gradual do crescimento. Se o crescimento cai mais rápido, aí o ponto de virada do policy está mais próximo. Com larga probabilidade, parece que vamos caminhar entre esses dois cenários. Esses extremos mais plausíveis não são assim tão extremos e os cenários intermediários são mais prováveis e positivos.
Para o Brasil, o catalisador para a melhora dos mercados é a proximidade do ciclo de queda nos juros. Com uma maior estabilidade nos juros globais, os fluxos vão buscar as economias em que o diferencial de juros ajuda e que estão mais adiantadas no ciclo de política monetária. Afinal, o choque da Covid alinhou as políticas de praticamente todos os países do mundo. Houve uma forte expansão monetária e fiscal em 2020 e 2021, em resposta ao choque. Depois, mais para a segunda metade de 2021 (em alguns lugares antes), a política monetária contraiu rapidamente. Se agora vamos para um período de estabilidade no custo global do dinheiro, com riscos extremos reduzidos, o mercado deve buscar alocar mais risco onde o ciclo de queda de juros está mais próximo.
O Brasil, a priori, encaixa-se bem aí. Nosso ciclo de aperto começou antes e foi mais intenso do que a maioria dos países. Já estamos com a Selic no pico há 1 ano, quando boa parte dos países ainda está apenas começando a parar de subir (Figura 4). Enfrentamos, como em muitos países, uma resistência na queda na inflação de serviços, mas vamos argumentar abaixo que, mesmo caindo gradativamente, a perspectiva parece positiva. O problema é que tem faltado bom senso por parte do governo nas pressões sobre o Banco Central para o corte de juros e nas críticas à meta. Se há 20 anos esse discurso já parecia ultrapassado, hoje ele está descolado dos fatos. O Banco Central, por sorte, é autônomo, mas o efeito desse negacionismo monetário é desancorar expectativas e retardar o início do ciclo.
Ainda assim, a despeito das pressões políticas, veremos um cenário mais consistente de queda na inflação nos próximos meses. Também, aos trancos, parece que pelo menos a relação entre a Fazenda e o BC está funcionando, apesar dos ruídos que Lula e o PT geram. Isso tem ajudado a manter as expectativas longas de inflação mais estáveis nas últimas semanas, ainda que em um patamar elevado (provavelmente refletindo a expectativa de elevação da meta no CMN de junho). Lula vai continuar sendo Lula, mas, se as expectativas param de abrir, a trajetória de curto prazo de inflação e atividade ficarão dominantes na decisão do Copom. Na terminologia dos BCs, as decisões ficarão mais data dependent.
Sobre atividade, temos visto números um pouco acima do esperado no início do ano. Isso, em parte, pelo crescimento do PIB agrícola, muito concentrado no 1º TRI e que afeta outras áreas como os transportes. Também a queda na inflação cheia e as expansões fiscais recentes devem ter tido impacto positivo sobre a renda e o consumo no período. Mas é bom ter um cuidado para não extrapolar uma tendência maior daqui. Algumas pesquisas tiveram mudanças metodológicas relevantes e isso, mais as grandes oscilações da pandemia, atrapalham a dessazonalização das séries.
Olhando adiante, nossa percepção é que os condicionantes para uma expansão da demanda seguem piorando. As famílias estão endividadas, com suas dívidas concentradas em linhas de alto custo, como cartão de crédito e cheque especial (Figura 5), e, não à toa, a inadimplência segue abrindo. Enquanto isso, nas empresas segue a contração no crédito, especialmente nas linhas relacionadas a capital de giro, o que tem forte correlação com a demanda por trabalho (Figura 6). Nos próximos meses, devemos ver uma desaceleração maior do mercado de trabalho e, a reboque, do consumo. No atual nível de juros e com o mercado de crédito corporativo ainda patinando é pouco provável que o investimento melhore. A desaceleração da demanda doméstica ficará maior.
Do lado da inflação, a convergência para as metas ainda está incompleta. Assim como no resto do mundo, a inflação dos bens industriais e das commodities vieram rapidamente para baixo, mas a inflação de serviços é mais resistente (Figura 7). Em um ambiente de expectativas de inflação abrindo, essa resiliência à queda do núcleo da inflação de serviços incomoda, claro, ao Copom.
A inflação de serviços tem um componente inercial forte e não vai convergir para as metas de uma hora para outra. Mas, nos próximos meses devemos ver quedas mais consistentes aqui. 60% do núcleo de serviços vem dos grupos Aluguel e Condomínio e Alimentação Fora do Domicílio e ambos devem ter variações menores do que os últimos dados mostram.
Aluguel e Condomínio são bastante indexados e, apesar da série variar, sua tendência é muito determinada pelos reajustes da inflação cheia passada (Figura 8). As últimas variações foram acima do que a tendência projeta. Veremos alguma correção aí.
Já Alimentação Fora do Domicílio (basicamente restaurantes, bares, etc) dificilmente manterá uma inflação anual de 8% com os custos de alimentação caindo (Figura 9). Os serviços ligados a alimentação vieram impulsionados pela reabertura e pela redução do home office, mais do que recuperando as perdas que tiveram no período da pandemia. Esse processo deve reverter nos próximos meses.
Se estivermos corretos – e é sempre bom ressaltar que os dados econômicos são voláteis – veremos o núcleo de serviços acomodando em um patamar um pouco mais baixo que nos últimos meses. A atividade perdendo ritmo e o mercado de trabalho desacelerando dão consistência a essa queda na inflação. Junte a isso uma perspectiva mais favorável para as commodities de energia e alimentos, resultado da desaceleração global, e temos um ambiente mais favorável para o início dos cortes.
É a consolidação dessa trajetória de queda na inflação que aproxima o ciclo de cortes e muda o panorama do mercado de ações por aqui. As empresas domésticas em maior ou menor grau estão com os lucros pressionados pela queda na demanda e pelo forte aumento nos custos financeiros. Isso, claro, muda se os juros começam a cair. Os múltiplos também estão historicamente baixos, pela forte abertura dos juros longos e pelo aumento da percepção de risco. A virada na política monetária vai trazer um impacto forte na projeção de lucros e, principalmente, na reprecificação dos múltiplos.
Para nós, agosto é uma boa aposta para o início dos cortes, mas, admitimos, é difícil precisar o momento quando se depende tanto de dados de curto prazo e com expectativas de inflação ainda elevadas. Mais importante é a consistência da trajetória de queda de inflação. Se ela vai prevalecendo nos próximos meses, com a ajuda do cenário global (essa premissa é fundamental), o mercado vai antecipando.
Trata-se de história boa, portanto, e o mercado tem mais para andar nesse contexto. Mas, como temos aprendido a duras penas, os riscos em torno dessa história também são grandes.
Nosso problema é que a consolidação fiscal, mesmo com o novo arcabouço, fica ainda incompleta. E temos um governo com muito pouca convicção sobre a necessidade de buscar um equilíbrio fiscal mais rapidamente. Isso fragiliza o ciclo por aqui e nos deixa bem mais vulneráveis às oscilações globais. Vimos um pedaço desse filme no início do ano.
Não que o arcabouço fiscal seja em si ruim. O lado positivo é que ele impõe que os gastos cresçam menos do que as receitas ao longo do tempo. Isso tirou o fantasma de descontrole do endividamento no curto prazo. Mas esse ajuste vem de uma maneira suave – os gastos aumentam 70% do crescimento real das receitas nos anos normais. Nós estamos partindo de um déficit primário elevado e, se contarmos somente com o arcabouço, só zeraremos esse primário a perder de vista. Nossa dívida pública elevada não recomenda um ajuste tão gradual.
O governo tenta resolver isso anunciando metas ambiciosas de aumento do primário para os próximos anos (terminando o mandato de Lula com um superávit de 1% do PIB). Ainda não é o suficiente para estabilizar a dívida, mas seria um passo muito importante. Deslocando-se o ponto de partida do primário para cima, a dinâmica do endividamento, na regra do arcabouço, melhora bem. Esse aumento do primário, no entanto, não vem da regra de controle de gastos em si, mas sim de um forte aumento da arrecadação. O governo busca um ganho da ordem de 1,5% do PIB na arrecadação fechando buracos tributários e reduzindo os subsídios.
É uma boa agenda. Subsídios e benefícios tributários são tão ou mais perniciosos que os gastos ineficientes e são muito menos transparentes, mas é uma agenda que exige uma série de mudanças na legislação. O governo não consegue resolver tudo com poucas medidas e cada benefício tributário tem um lobby e vários pais no Congresso. Será uma série de batalhas legislativas e no judiciário, provavelmente distribuídas no tempo. O governo deve ter sucesso no início, mas a queda normal na popularidade no decorrer do mandato e as dificuldades crescentes de articulação no Congresso vão tornando essa agenda mais difícil.
Se esse ganho relevante na arrecadação não vier, a meta de primário só ficaria em pé com o corte de gastos. O problema aqui é que o arcabouço, mesmo aprimorado no Congresso, não estabelece regras de enforcement rígidas o suficiente para garantir que o governo fará esses cortes. E já está evidente que o corte de gastos não virá por livre escolha do governo. Assim, parece claro que, se a arrecadação não cresce, o governo não entrega o resultado primário. E, se não entrega o primário, não tem perspectiva de estabilização da dívida e o arcabouço vira letra morta.
É com esse risco crescente no tempo que vamos conviver, já que a questão da arrecadação não se resolve no curto prazo. Em um mercado global favorável e com a desinflação por aqui levando ao corte de juros, essa fragilidade fica em segundo plano. Isso não vai impedir uma recuperação importante dos mercados, mas esse pano de fundo é ruim e nos deixa mais vulnerável às condições globais e, principalmente, coloca um limite no nosso ciclo.
Voltamos à fase de ciclos curtos, em que as recuperações são fortes porque os ativos partem muito pressionados pelo aumento expressivo no juro real nas fases ruins. É onde estamos. Mas a volta tende a ser curta e as viradas para baixo também abruptas, porque a consolidação fiscal incompleta eleva os nossos juros neutros e nos deixa muito dependente das condições globais para rolar uma dívida pública que deve seguir crescente ainda por muito tempo.